terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

ANTONIA

Nesse final de semana me peguei assistindo pela enésima vez um filme infelizmente pouco conhecido por aqui: A Excêntrica Família de Antônia (Antonia, 1995) da cineasta holandesa Marleen Gorris.

O filme conta um pedaço da vida de Antonia, uma viúva relativamente jovem que depois da 2ª Guerra volta para o vilarejo onde nasceu e cresceu com sua filha Danielle (de uns dezoito anos mais ou menos). No vilarejo somos apresentados aos diversos personagens que compõem essa miscelânea de tipos, alguns francamente cômicos e outros trágicos, mas mesmo os personagens mais cômicos tem um certo tom melancólico, que nos da uma vaga idéia da profundidade de suas construções. Muitos desses personagens são apresentados com apelidos, como a Louca Madona que uiva para a lua cheia e que deixa o Protestante (seu vizinho de baixo) furioso. Essa, aliás, é provavelmente uma das histórias de amor mais sutis e mais bonitas que tive a felicidade de ver e seu final, que para alguns pode parecer trágico, é de uma elegância pragmática ímpar e se encaixa na história da forma mais perfeita possível.

Continuando com os personagens, temos ainda nomes como Boca Mole e Dedo Torto ou mesmo Vigário (que continua sendo chamado assim mesmo após se desfazer da batina). Essa caracterização dos personagens nos transmite de uma forma absurdamente simples o quão pequeno é o vilarejo e o quanto as pessoas conhecem umas às outras.
Fora todo esse requinte de roteiro, o filme ainda tem um outro valor: Marleen Gorris talvez seja a mais famosa cineasta feminista dos últimos vinte anos, mas este filme não tem um discurso direto sobre o papel ou os direitos das mulheres, melhor que isso, ele os apresenta de forma natural, como se fossem aceitos de imediato pela sociedade como uma coisa elementar (é claro que esses direitos da mulher são elementares, mas convenhamos que a sociedade patriarcal e machista infelizmente não pensa assim, sobretudo na época em que o filme se desenrola).

Antonia, como já comentei, é uma viúva que se muda com sua filha para as terras que sua mãe lhe deixou (na verdade é esse o motivo de seu regresso: estar com a mãe em seu leito de morte) e começa a tocar a fazenda praticamente sozinha. Bas, um fazendeiro também viúvo, apaixona-se por ela e lhe propõe casamento dizendo que seus filhos (cinco rapazes) precisam de uma mãe, mas ela retruca dizendo que não precisa deles, mas aceitaria que lhe ajudassem no trabalho pesado. Bas, então, passa a ajuda-la de forma comovente e sincera, respeitando seu tempo. Mais para frente os dois mantém um caso, "não lhe darei minha mão, mas darei o resto" diz Antonia certa vez; apesar disso eles nunca se casam e essa relação nunca é contestada por ninguém.
Um outro formidável caso de liberdade feminina é quando Danielle, a filha de Antonia, lhe diz "quero ter um filho", ao que a mãe pergunta "e que tal um marido?", mas ela responde com desdém "não, acho que não". Elas vão para uma outra cidade e pedem ajuda a Letta, uma mulher que fica grávida pelo simples e puro prazer de estar grávida. Danielle então da a luz à Thérese, uma garotinha super-dotada que discute filosofia alemã com Dedo Torto e, segundo a escola, precisa de atenção especial. Dessa forma entre em cena Lara, a professora de Thérese; Danielle logo se apaixona por ela e mantém uma relação estável. Mais uma vez essa relação não é contestada por ninguém.
Esses são alguns exemplos da liberdade feminina, intelectual e sexual, proposta por Gorris. Creio que o filme seja um triunfo cinematográfico, não só pelo seu roteiro maravilhoso ou sua belíssima trilha sonora, mas porque é uma das raras ocasiões em que podemos ver uma tese por contraste. Geralmente os filmes que apresentam um certa idéia a expõem por meio de um conflito ideológico, como é o caso de Chocolate (Chocolat, 2000) de Lasse Hallström, em que a personagem de Juliette Binoche causa furor na pequena vila através de seu comportamento transgressor (de certa forma diametralmente oposto às convenções a que a população do local estava acostumada). Diferente disso, em A Excêntrica Família de Antônia essas mesmas idéias (transgressoras se formos coloca-las no contexto histórico e geográfico do filme) são apresentadas com absoluta naturalidade, isso causa um certo estranhamento ao espectador (como uma relação lesbiânica é tão aceita nos anos 50 em uma vila rural tão pequena?) e justamente desse estranhamento é que ocorre a noção de que aquilo é natural (por que não?). Uma tática de roteiro das mais sutis e complicadas, muito fácil de se cair num bizarrismo sem profundidade, mas longe disso Marleen Gorris nos da uma aula.

Há, acredito, apenas um caso onde essa liberdade é contestada: quando Danielle pretende ficar grávida sem se casar, o bispo da um sermão condenado Antonia e filha. Uma forma nem tão sutil de se mostrar como a Igreja, patriarcal por excelência, é um impeditivo retrógrado e hipócrita aos direitos das mulheres (hipócrita pois logo após o bispo é descoberto fazendo sexo com uma fiel dentro do confessionário).

Além de levar de uma forma das mais interessantes a luta feminista a um pequeno vilarejo rural holandês, o filme também é um belo questionamento sobre a vida e a morte. Dentro desse microcosmo de personagens, muitos nascem e muitos morrem, a vida da continuidade fazendo-se notar de diversas formas, sob diversos olhares. Mais que isso, ele não começa em um início e não termina em um desfecho. Assim como se pronuncia após o último fade-out "…nada se conclui". De fato, conforme um ponto de vista de certa forma niilista (do qual sou partidário), pouco se conclui no final das contas porque pouco há pra ser concluído, as coisas apenas são.

De uma forma geral, A Excêntrica Família de Antônia é um excelente filme que, infelizmente, não recebe do público brasileiro o devido reconhecimento, assim como a cineasta em questão. Parabéns à Gorris por presentear o cinema com essa obra-prima que pessoalmente coloco entre os dez melhores filmes que tive a oportunidade de ver.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

CINEBIXO

A temporada 2010 do Plano 8 está aberta!

E, para começar com estilo o pessoal batuta do Plano 8 fez uma seleção especial para a primeira semana de "aulas" do IA. Durante a Semana dos Bixos, na qual os calouros serão recebidos com muitas atividades bacanas elaboradas pelos veteranos mais supimpas, o cineclube não vai deixar barato.

Serão exibidos filmes de segunda a sexta-feira, em três horários diferentes - das 10h às 12h, das 14h às 16h e das 16h às 18h - e cada dia terá um tema:

* Segunda - 01/03: JUVENTUDE

* Terça - 02/03: ANIMAÇÕES

* Quarta - 03/03: O PAPEL DO ARTISTA

* Quinta - 04/03: CINEMA EXPERIMENTAL

* Sexta - 05/03: À MODA DA CASA


NÃO PERCAM! Esse cinebixo muito louco de verão vai ser muita confusão!

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

UM GORDINHO INGLÊS

Minha crítica de hoje é sobre um dos meus cineastas favoritos e, creio eu, um dos melhores de todos os tempos: Alfred Hitchcock.

A. Hitchcock em um still de Psicose (1960)


Em muitos lugares há a associação de Hitchcock como "mestre do suspense", mas creio que isso seja menosprezar a obra desse grande mestre. Sim, ele fez cenas de suspense como poucos, basta lembrar dos passos do assassino se aproximando no escuro em Janela Indiscreta (1954), de 'Tippi' Hedren subindo as escadas em Os Pássaros (1963), a bomba por explodir em Sabotagem (1936) ou a invasão da casa dos Bates no clássico Psicose (1960).
Mas há muito mais na obra de Hitchcock que apenas suspense: Hitchcock foi, antes de tudo um experimentalista. Se pode-se acusá-lo de abusar de clichês nos roteiros (a bela protagonista que ajuda o mocinho a provar sua inocência) não se pode acusa-lo do mesmo em sua forma de narrar. Cada filme é uma deliciosa nova jornada dentro do mundo cinematográfico: o filme quase sem cortes em Festim Diabólico (1948), a câmera contida no apartamento em Janela Indiscreta (1954), o movimento de câmera em "ré" em Frenesi (1972), a plano em 90º absolutamente transgressor de Psicose (1960), a escada gótica de O Pensionista (1927) e o som de Chantagem & Confissão (1929), primeiro filme falado da Inglaterra e que foi gravado mudo, prevendo a adição posterior de som.
Hitchcock pode tranquilamente ser usado como um exemplo do papel de um diretor, seus filmes são geralmente adaptações de novelas policiais medíocres e, no entanto, são transformados - pela direção - em obras-primas. Digo que o mérito é da direção (Hitchcock não escrevia os scripts, contratava roteiristas para escrevê-los), pois é através da narração de Hitchcock que essas histórias despretensiosas ganham forma (é o que diferencia um "simples" assassinato em um hotel em beira de estrada da clássica cena do já citado Psicose).
De uma forma geral, Alfred Hitchcock foi um cineasta que não se repetiu de filme para filme (um paradoxo se lembrarmos das temáticas dos filmes). Assistir a cada filme do diretor é se permitir entrar em uma nova experiência narrativa que não se prende em nenhum momento ao cinema de vanguarda, mas que nos remete muito a Fritz Lang e Orson Welles (que deve muito de seu estilo ao mestre em questão).
Se você deseja conhecer mais da obra de Hitchcock, pode começar por qualquer filme, pessoalmente indico os já citados Festim Diabólico (1948), Janela Indiscreta (1954), Os Pássaros (1963), Psicose (1960), Frenesi (1972), O Pensionista (1927), além de Spellbound (1945), a comédia O Terceiro Tiro (1955), Intriga Internacional (1959), O Homem que Sabia Demais (apesar de ambas as versões serem boas, pessoalmente prefiro a americana de 1956), Disque M para Matar (1954), A Dama Oculta (1938) e Ladrão de Casaca (1955). Uma outra solução é conferir a mostra do cineasta que irá rolar na Galeria Olido (no centro de São Paulo) a partir do dia 17 de fevereiro com ingressos a R$1,00. Mais informações no site da Catraca Livre.


A. Hitchcock dirigindo Kim Novak em Um Corpo que Cai (1958)


Um professor meu costumava dizer que todo mundo deveria assistir a pelo menos dez filmes de Hitchcock, permito-me corrigi-lo dizendo que todo mundo deveria assistir a pelo menos vinte filmes de Alfred Hitchcock.